Responsabilidade Civil do Residente Médico em Relação às Especialidades Cirúrgicas

Responsabilidade Civil do Residente Médico em Relação às Especialidades Cirúrgicas

A residência médica é uma modalidade de pós graduação, sendo exigido dos médicos residentes, para o exercício de suas funções no programa de treinamento, a comprovação do registro no Conselho Regional de Medicina, os obrigando, dessa maneira, a seguir as suas normas.

Irany Novah Moraes explica sobre a responsabilidade do residente: "A sua inexperiência não os exime da responsabilidade que têm perante os doentes." Acrescenta ainda: "O médico residente é médico como outro qualquer, tanto que, para o exercício de suas funções no programa de treinamento, é exigido dele vínculo com o Conselho Regional de Medicina e, dessa maneira, tem de seguir as suas normas e a elas está sujeito".

No Brasil, os Programas de Residência Médica credenciados pela Comissão Nacional de Residência Médica possuem acesso direto pelo profissional médico ou dependem da comprovação de pré-requisitos, como é o caso das especialidades cirúrgicas em que o médico, para ingressar no programa, deverá comprovar ter cursado a residência médica em Cirurgia Geral ou o Programa de Pré-requisito em Área Cirúrgica Básica.

A Resolução SESU/CNRM Nº 48, de 28 de junho de 2018, que dispõe sobre a Matriz de Competências dos Programas de Residência Médica em Cirurgia Geral e do Programa de Pré-requisito em Área Cirúrgica Básica no Brasil, determina, em seu artigo 3º, que:

 

“Art. 2º O programa de residência médica em Cirurgia Geral terá duração de 3 (três) anos.

Art. 3º A conclusão do Programa de Pré-requisito em Cirúrgica Básica é condição indispensável para o ingresso nas especialidades cirúrgicas, que incluem: Cirurgia do Aparelho Digestivo, Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Cirurgia Plástica, Cirurgia Vascular, Urologia, Cirurgia Torácica, Cirurgia Oncológica, Cirurgia Pediátrica e Cirurgia Coloproctológica.

§ 1º O Programa de Pré-requisito é constituído pelos Ciclos R1 e R2 constantes da Matriz de Competências em Cirurgia Geral anexa;

§ 2º A conclusão do Programa de Pré-requisito não confere título de especialista, conferindo ao concluinte um certificado que comprova sua competência para a atuação nos procedimentos cirúrgicos básicos listados no anexo.

§ 3º A certificação referida no parágrafo anterior será aceita para fins de aproveitamento em programas de residência médica de outras especialidades compatíveis, por prazo não superior a cinco anos, contados da emissão do certificado.”

(grifos e sublinhados nossos)

 

Como visto, em relação às especialidades cirúrgicas, a Resolução CNRM nº 48/2018 acrescenta à exigência de inscrição no Conselho Regional de Medicina, que é comum a todas as especialidades, o pré-requisito da conclusão da residência médica em Cirurgia Geral.

Logo, o profissional médico cirurgião geral que inicia a residência médica de uma especialidade cirúrgica é, em teoria, um profissional com treinamento nas técnicas cirúrgicas convencionais e nas técnicas laparoscópicas.

Portanto, a condição de ingresso na residência médica das especialidades cirúrgicas é cursar os ciclos R1 e R2 da Matriz de competências da Cirurgia Geral, que engloba o treinamento nas seguintes competências (Resolução CNRM nº 48, de 28 de junho de 2018), exemplificativamente:

 

“R1 (Residente de primeiro ano):

(...)

11 - Dominar o cuidado da ferida operatória e tratamento da infecção cirúrgica.

12- Manusear o equipamento para cirurgias videolaparoscópicas: a unidade de imagem (monitor, microcâmera e processadora de imagens), o insuflador (pressões de insuflação), fonte de luz e outros.

13 - Avaliar e utilizar corretamente os instrumentos cirúrgicos permanentes e descartáveis (grampeadores, cargas, pinças e os diversos geradores de energia).

14 - Analisar os diferentes tipos de energia usados em cirurgia e suas aplicações.

15 - Realizar os procedimentos cirúrgicos essenciais à área de prática incluindo as bases da cirurgia torácica, vascular, urologia e coloproctologia, com especial ênfase às urgências e emergências dessas especialidades”.

“Residente de segundo ano:

(...)

14 - Dominar a técnica operatória de laparotomias exploradoras para biópsias/drenagem de abscessos; colecistectomia laparoscópica e laparotômica; gastrostomia/jejunostomia; cistostomia cirúrgica; enterectomia; enteroanastomose manual e mecânica; apendicectomia - laparoscópica e laparotômica; salpingectomia; ooforectomia; ooforoplastia; esplenectomia laparotômica; colectomia parcial laparotômica; ileostomia; colostomia; cistorrafia; herniorrafia incisional; herniorrafia inguinal por inguinotomia; cirurgias orificiais: hemorroidectomia, fistulectomia anal e fissurectomia anal.”

 

Apesar de atualmente o Programa de Pré-requisito em Cirúrgica Básica não conferir titulação, até 2019 referido programa conferia título que era levado a registro no Conselho Regional de Medicina. Com o registro (RQE) da especialidade de cirurgia geral, o médico adquiria o direito de se anunciar como cirurgião geral para o público em geral, podendo assumir funções que exigissem a divulgação da referida qualificação, assim como prestar concursos públicos e assumir cargos que demandassem a comprovação do registro da especialidade da cirurgia geral.

Feitas tais considerações, é possível verificar que os médicos residentes das especialidades cirúrgicas não deixam de ser médicos, graduados em medicina, com registro no CRM, e que podem anunciar-se como cirurgiões gerais (até 2019), pois possuem o registro do título da especialidade, obtido mediante a realização da residência médica em cirurgia geral (R1 e R2), fato que lhes garantes o direito de exercer a profissão, inclusive estando capacitado para os procedimentos cirúrgicos não supervisionados e podendo anunciar a sua especialidade para o público.

O aprimoramento na especialidade cirúrgica não exime o médico residente, da responsabilidade que tem perante os doentes, especialmente quando devidamente treinado e capacitado para as cirurgias convencionais e laparoscópicas, devendo estar capacitado para o manejo dos equipamentos e técnicas cirúrgicas, principalmente por se tratar de médico graduado e com residência médica concluída e registrada no CRM na especialidade da cirurgia geral (até 2019).

O treinamento dos médicos residentes de especialidades cirúrgicas é realizado sob a responsabilidade de instituições de saúde, universitárias ou não, sempre sob a orientação e supervisão de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional (preceptores), tendo tais profissionais responsabilidade pelos atos que praticam e que supervisionam, na medida das suas contribuições e/ou omissões.

Assim, a presença do preceptor da residência de especialidade cirúrgica durante o procedimento cirúrgico não exclui por completo a responsabilidade dos médicos residentes, tendo em vista que estes últimos apresentaram o certificado de conclusão da residência em cirurgia geral, estando, assim, capacitados para as práticas cirúrgicas. Portanto, os médicos residentes são responsáveis pelos atos médicos por si executados durante o procedimento cirúrgico que exija conhecimentos atrelados à cirurgia geral básica, como é o caso do manejo dos equipamentos e do conhecimento e capacitação nas técnicas cirúrgicas convencionais e laparoscópicas.

A apuração da responsabilidade de preceptor e médico residente dependerá da demonstração de que as decisões e atitudes tomadas por cada membro da equipe cirúrgica foram acertadas e baseadas em evidências científicas, bem como que o manejo dos equipamentos e a execução das técnicas cirúrgicas pelo residente tenham sido realizadas com destreza, demonstrando a inexistência de negligência, imperícia e/ou imprudência.

Ao prestar atendimento, os médicos residentes e o preceptor assumem a responsabilidade direta pelos atos que praticaram, não podendo, a exemplo de qualquer médico, jamais atribuir seus insucessos a terceiros, nos termos do Art. 6º do Código de Ética Médica.

Nessa perspectiva, se ressalte que, apesar de estar em aprendizagem em relação às especialidades cirúrgicas, sob orientação e supervisão do preceptor, o médico residente detém conhecimentos suficientes para a realização da cirurgia (o manejo dos equipamentos e execução das técnicas cirúrgicas) e para o tratamento do paciente, tendo, a garantia de orientação e supervisão do preceptor em tempo integral.

O Superior Tribunal de Justiça entende que a responsabilização do médico residente das residências médicas de acesso direto ocorre em relação aos atos para os quais o médico estava habilitado em razão da sua graduação, senão vejamos:

 

“RESPONSABILIDADE CIVIL. Médico. Médico residente. Acórdão. Falta de fundamentação. Embargos de declaração.

- Suficiente fundamentação do acórdão que estabeleceu a relação causal entre a atividade dos réus e o resultado morte da paciente.

- Responsabilização do médico-residente pelos atos que estava habilitado a praticar em razão de sua graduação. Diferença do grau de responsabilidade entre a dos residentes e a do médico orientador, que não se leva em conta porque já fixada a condenação no mínimo.

- Embargos de declaração rejeitados, com aplicação de multa. Recurso especial não conhecido.”

(Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 316.283. Relator: Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Julgado em: 18 jan. 2001)

 

O mesmo raciocínio deve ser ampliado para as residências médicas que exigem a comprovação de pré-requisitos (formação em outras especialidades) para que o médico residente seja considerado habilitado a praticar os atos da graduação e das especializações tidas como pré-requisito.

No que diz respeito à responsabilidade do preceptor em relação aos atos daqueles que estavam sob supervisão, é possível afirmar que aquele possui o dever de orientar e evitar ao máximo qualquer dano ao paciente, utilizando, para tanto, dos seus conhecimentos e experiência, supervisionando o residente em tempo integral, e orientando-o em relação às intercorrências, sendo que, sempre que entender necessário para segurança do paciente, deve assumir imediatamente a posição de cirurgião principal. Botti e Rego ensinam que “ser educador é a função primordial do preceptor, identificando as oportunidades de aprendizagem, os cenários de exposição, tornando sua prática uma possibilidade para ensinar o residente. Não atua apenas como um facilitador, pois é também um bom médico. Ele mostra ao residente como se faz. Então funciona como uma vitrine de atributos técnicos e relacionais, tendo habilidades pedagógicas, o que o permite trocar e construir conhecimentos, contribuindo para a formação de cidadãos”.

Saliente-se que a preceptoria não afasta a responsabilidade compartilhada, sendo que cada membro de uma equipe cirúrgica possui corresponsabilidade pelos atos praticados durante o procedimento cirúrgico, assumindo as repercussões de seus próprios atos.

Ao médico residente em especialidades cirúrgicas, é resguardado o exercício integral da atividade profissional para a qual está habilitado (cirurgia geral), podendo ser responsabilizado por eventual dano que venha a causar a um paciente, mesmo se na condição de residente.

Tanto o residente quanto o preceptor estão passíveis de responder ética e judicialmente pelos atos médicos realizados na medida da responsabilidade definida a cada um, por cada esfera judicante, seja no Conselho Regional de Medicina ou no Poder Judiciário.

Esta é a razão pela qual, diante de eventual dano resultante de ato praticado pelo residente (, caberá ao julgador compreender se o residente estava habilitado para tal prática ou não, e se o preceptor o supervisionou e orientou como deveria, de forma a definir a culpabilidade de cada qual.

Sobre este aspecto, Miguel Kfouri Neto ensina: "Quanto ao residente, já doutor em medicina, a responsabilidade é pessoal. Eventualmente, o preceptor de residência médica poderá responder solidariamente, caso permita que um residente de primeiro ano (R-1), por exemplo, realize ato da especialidade considerada, para o qual ainda não se encontre habilitado (apenas um R-3, p. ex., já estaria capacitado para tal)."

Nesta toada, cumpre esclarecer que os médicos preceptores dos médicos residentes de uma determinada instituição podem, em determinados casos, ser considerados responsáveis solidários pelos danos porventura causados por estes aos pacientes em atos realizados sob a sua supervisão.

O erro médico pode ser escusável, que se trata do erro inevitável, que aconteceria mesmo que todas as cautelas tivessem sido tomadas; ou inescusável, que é o erro evitável, que teria sido evitado se as cautelas de praxe tivessem sido adotadas, sendo que apenas este último é passível de ser indenizado.

Cumpre aos médicos, residentes e preceptores, portanto, demonstrar que o seu atuar não foi o causador do dano ao paciente, devendo a responsabilização estar atrelada à individualização da participação de cada médico para ocorrência do dano.

É possível, inclusive, prevalecer a situação em que o dano ao paciente seja consequência de uma omissão ou ação resultante da atuação em conjunto do preceptor e dos médicos residentes, sendo que somente neste caso poderá haver a responsabilização tanto do preceptor quanto do(s) residente(s), de forma solidária.

A responsabilidade solidária do médico residente pode decorrer ainda do dano causado pela equipe cirúrgica (em conjunto) que prestou atendimento ao paciente na instituição de saúde, sendo que a solidariedade decorre do fato de que, não sendo identificado o autor do dano ao paciente, todos respondem igualmente pelo ressarcimento deste dano.

Concluindo, restando comprovado que não houve omissão do médico preceptor, que esteve presente durante a integralidade do ato cirúrgico e orientou ativa e adequadamente o residente (pautando suas orientações na Medicina baseada em evidências), tendo ainda empenhado todos os seus esforços para preservar a vida e a saúde do paciente, assumindo o procedimento cirúrgico assim que identificou a gravidade, será exclusivamente do(s) médico(s) residente(s) a responsabilidade pelo dano causado ao paciente, se restar comprovada que, apesar da sua capacitação técnica para a execução do ato médico cirúrgico, falhou na sua execução, ficando evidenciado o seu agir culposo, sendo que tal apuração somente será possível após a realização da perícia técnica.

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