A Autonomia do Médico e a prescrição fora do rol da ANS  - Caso hipotético de um procedimento da hemodinâmica e cardiologia intervencionista -

A Autonomia do Médico e a prescrição fora do rol da ANS - Caso hipotético de um procedimento da hemodinâmica e cardiologia intervencionista -

Diante do resultado de um exame de Ecocardiograma Transesofágico analisado pela equipe Cardiológica, o médico cardiologista constatou a necessidade de realização de Tratamento Percutâneo da Válvula Mitral por Mitraclip, por se tratar de única medida eficaz para reverter o quadro de baixo débito e insuficiência cardíaca do paciente.

Solicitado o custeio do tratamento junto a determinado plano de saúde, houve emissão de negativa, diante do fato de que tal procedimento não estaria inserido no Rol de Procedimentos da Resolução Normativa n.º 465/2021 da ANS.

Em decorrência disso, o paciente ingressou com medida judicial e, com a concessão da liminar, realizou o procedimento com sucesso e sem intercorrências, havendo excelente evolução no quadro de saúde do paciente, e melhora importante dos sinais de baixo débito cardíaco, o que culminou em sua alta em breve espaço de tempo.

Após o tratamento, o médico recebeu uma correspondência da operadora de saúde solicitando explicações, informando que seria instaurado procedimento administrativo para apuração do caso, em razão da prescrição, pelo médico hemodinamicista, de procedimento não incluído no Rol da ANS.

Pergunta-se: a atitude do médico, ao promover a solicitação do procedimento Implante de Mitraclip à operadora de saúde, não incluído no Rol da ANS, poderia ser por esta limitada?

Primeiramente, o médico cardiologista constatou que o paciente era portador de Insuficiência Mitral Secundária Grave, com sintomas refratários ao tratamento clínico convencional. Com isso, concluiu que o Tratamento Percutâneo da Válvula Mitral, com grau de recomendação II “a” e nível de evidência B, era o procedimento mais indicado para reverter o quadro de baixo débito e insuficiência cardíaca.

Inclusive, o paciente já vinha apresentando dispneia aos mínimos esforços, ortoneia, palidez, emagrecimento, extremidades frias, taquicardia, pressões limítrofes baixas e inapetência, todos estes

sinais de débito cardíaco, razão pela qual tinha o médico o dever de transparência e informação para com o seu paciente.

Diante deste quadro clínico, o médico que realizaria o procedimento da hemodinâmica e cardiologia intervencionista não poderia ser impedido de utilizar o melhor da sua capacidade e expertise no atendimento do seu paciente, e de atuar com autonomia no exercício de suas atividades, sob pena de grave violação ao Código de Ética Médica, em seu capítulo II, que trata dos Direitos dos Médicos, em seus artigos 20 e 32.

Principal norma relativa aos deveres éticos, a autonomia profissional é contemplada no citado Código de Ética Médica desde seus princípios fundamentais, onde destacamos também os incisos I, II, VII e VIII, que assim prescrevem:

 

“I - A medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.

II – O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.

(...)

VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.”

O inciso XVI do mesmo Capítulo do Código de Ética Médica prevê que: “Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente.” [grifos nossos].

Portanto, cabe ao médico prescrever o que há de mais eficiente para o caso concreto, não sendo o seu papel julgar se o paciente terá ou não a cobertura do procedimento pela operadora de saúde.

Em outras palavras, o médico, em princípio, tem autonomia para a indicação de determinado tratamento/procedimento para o paciente, não podendo ter a sua atuação limitada ou pré-estabelecida pela operadora de saúde, a qual pode questionar ao médico se o paciente é elegível para o procedimento, utilizando-se dos critérios de elegibilidade para autorizar ou negar a cobertura do procedimento.

Todavia, negar ao paciente o conhecimento acerca dos tratamentos mais modernos e cientificamente reconhecidos não é papel do médico. Cumpre a este – por meio de sua consciência e com base no Código de Ética Médica, que o obriga a utilizar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance – buscar, nas evidências científicas mais atuais, o tratamento ideal para o seu paciente e prescrevê-lo de acordo com a sua convicção.

A tentativa de limitação da autonomia do ato médico por terceiros, com interferência imediata e direta em sua decisão terapêutica, já foi objeto de análise por pareceres do Conselho Federal de Medicina, que deixam clara a prevalência da autonomia do médico em detrimento de qualquer interferência de terceiros, senão vejamos:

“EMENTA: Cabe ao médico, no exercício da sua autonomia, proceder à avaliação clínica do trabalhador, solicitar os exames complementares definidos no PCMSO e outros que julgar pertinentes e, ainda, indicar terapêutica quando necessário.” (Processo Consulta CFM nº 34/2018 – Parecer CFM nº 09/2020)

“EMENTA:O médico no exercício das suas funções tem o direito de exercê-las com plena autonomia, assim como lhe compete o dever de requerê-las. Nenhuma deliberação em contrário pode ser imposta às suas funções”. (Processo Consulta CFM nº 28/3012 - Parecer CFM nº 37/2018).

“EMENTA: Sob a ótica da evidência científica e da ética médica, das decisões judiciais recentes e da Lei nº 12.842/13, deve ser assegurada a autonomia do

médico assistente quanto à decisão do tratamento mais adequado à saúde de seu paciente.” (Parecer CFM 13/15).

 

Assim, ainda que exista regra, em documento interno das operadoras de saúde, prevendo ser vedado ao médico solicitar procedimentos e terapias que não integram o Rol da ANS, colocando em risco, com isso, tanto a garantia de respeito à sua autonomia, quanto o direito do paciente à uma assistência médica de qualidade, cumpre ao profissional médico agir segundo sua consciência, de acordo com o Código de Ética Médica, buscando, nas evidências científicas, as justificativas para a prescrição do procedimento que melhor atenderá as necessidades do seu paciente.

Em virtude da intimação feita pela operadora de saúde informando a instauração de procedimento administrativo para apuração do caso, a recomendação é no sentido de que deva ser providenciada pelo médico uma denúncia formalizada dos fatos ao Conselho Regional de Medicina do Estado em que atuar e ao Ministério Público Estadual, para que sejam tomadas todas as providências que se fizerem necessárias.

Compartilhe